A Força Aérea Argentina (FAA) realizou, entre os dias 10 e 14 de novembro, na BAM Río Gallegos, seu último exercício operacional de 2019. Apesar da persistente queda no orçamento que a instituição vem sendo submersa nos últimos 4 anos, a FAA conseguiu manter um calendário bastante ativo de exercícios ao longo do último ano. Entre eles está o “Soberania 2019”, que fechou um ano com alguns marcos muito significativos para a FAA.
Texto e fotos Horacio J. Clariá
O Exercício Soberania 2019, em resumo, foi um treinamento aéreo avançado realizado ao longo de uma semana (10 a 14 de novembro), na Base Aérea Militar de Río Gallegos, situada na Patagônia Argentina. Seu principal objetivo foi oferecer treinamento realista de combate aéreo para pilotos e pessoal de solo da Força Aérea Argentina (FAA), o que incluiu missões de navegação tática, combate ar-ar em coordenação com o controle de solo e operações aéreas combinadas (COMAO – Combined Air Operations), tanto com partidas diurnas quanto noturnas.
Além disso, o Soberania 2019 se tornou o cenário de três marcos importantes para a FAA. Primeiro, o caça-bombardeiro A/OA-4AR Fightinghawk pertencente ao Grupo 5 de Caza da V Brigada Aérea (Villa Reynolds – Província de San Luis) voltou a operar na região sul do país após 7 anos, empregando cinco aeronaves. Segundo, o Grupo 6 de Caza da VI Brigada Aérea (Tandil – Província de Buenos Aires) enviou um IA-63 Pampa II e três do IA-63 Pampa III, o que marcou a estreia da nova versão do treinador avançado da Fábrica Argentina de Aviones S.A. (FAdeA) tanto em operações no sul da Argentina quanto em um exercício de combate aéreo. Por fim, outro marco importante foi o lançamento pela primeira vez de um míssil ar-ar AIM-9M Sidewinder a partir de um A-4AR.
Rumo à Patagônia
O translado das aeronaves começaram no sábado, 9 de novembro, com o apoio de um Lockheed C-130H Hércules do Grupo 1 de Transporte Aéreo (I Brigada Aérea – El Palomar, Província de Buenos Aires) e de um Saab 340B do Escuadrón VI del Grupo 9 de Transporte Aéreo (IX Brigada Aérea – Comodoro Rivadavia, Província de Chubut).
Também foi enviado ao Sul um helicóptero Mil Mi-171E do Escuadrón III del Grupo Aéreo 7 (VII Brigada Aérea – Moreno – Província de Buenos Aires) para operações de SAR, tarefa que foi dividida com os Bell UH-1H Huey II da Sección de Aviación del Ejército 11 (Exército Argentino), com base nas instalações do BAM Río Gallegos. Esta Seção do Exército opera a partir dos abrigos antiaéreos do setor conhecido “Complexo Cabeceira 25”, em que, nas décadas de 1980 e 1990, caças Dassault Mirage IIICJ e Mirage 5M5A Mara operavam a partir de uma série de modernos hangares reforçados (bunkers) que incluía também a instalações do então Grupo Técnico X, que executava tarefas de manutenção de caças supersônicos. Após a partida do Mirage 5A Mara para a VI Brigada Aérea de Tandil, no final de 1996, as instalações ficaram desocupadas e, só mais recentemente, há alguns anos, foram colocadas em condições operacionais para abrigar a Seção 11.
Por sua vez, o Grupo 2 de Comunicaciones, com sede em Comodoro Rivadavia, destacou pessoal e diferentes equipamentos para garantir que a Diretoria de Exercício (DIREX) pudesse realizar as ações de Comando e Controle das operações aéreas. A DIREX era composta por militares cuja missão era assessorar o Diretor de Exercício em diferentes áreas como: pessoal, inteligência, operações e logística. O Escuadrón VyCA 2 (Esquadrão de Vigilância e Controle do Espaço Aéreo) sediado na BAM Río Gallegos, que opera o radar fixo Westinghouse MTPS-43, recentemente modernizado pela empresa argentina INVAP, desempenhou papel vital no exercício, monitorando e controlando todas as atividades aéreas.
Operações Aéreas
As operações aéreas foram divididas em duas etapas. Nos primeiros dias foram realizados apenas voos FAM/FIT. Os voos de familiarização (FAM – Familiarization [Flights]) são muito importantes no início de cada exercício, nos quais os pilotos que normalmente não voam nessa região podem se adaptar ao aeródromo, geografia e áreas de operação. O sul da Patagônia é um cenário muito diferente daqueles normalmente operados pelos A-4 e Pampa. Ventos constantes e fortes prevalecem em uma região com paisagens diferentes, composta por montanhas arborizadas, costas com falésias, rios, ilhas e grandes planícies semidesérticas. Por sua vez, o clima é muito variável e dinâmico, podendo mudar completamente da decolagem para a aterrissagem, após, por exemplo, duas ou três horas de navegação. Em várias ocasiões, os fortes ventos chegaram ao limite do envelope de voo operacional da aeronave, atingindo 40 e 50 nós. Todas essas nuances exigiam que cada piloto fosse o mais preciso possível e realizasse uma pilotagem “fina”, não deixando nada ao acaso, ajustando-se aos limites operacionais e explorando a performance do avião ao longo do de todo o voo. Essa experiência “extra” de operar em uma região assim foi altamente absorvida pelos pilotos, especialmente aqueles que estavam voando pela primeira vez nessas latitudes.
Também houve dois ingredientes adicionais ao longo do exercício: o emocional e o sentimental. Em 1982, durante a Guerra das Falklands/Malvinas, a BAM Río Gallegos foi a sede de um esquadrão de Douglas A-4B Skyhawk, que decolaram e pousaram para cumprir missões de guerra da mesma pista onde os Fightinghawk agora operavam. Além disso, os atuais pilotos dormiram nas mesmas acomodações (chamada “Casita Bariloche”), em que, durante a guerra, todas as manhãs, os pilotos dos Skyhawk acordavam cedo para cumprir as missões de combate e, em várias ocasiões, muitos deles nunca mais retornam.
Já o treinamento de forças integradas (FIT – Forces Integration Training) consistiu basicamente em missões de combate aéreo dissimilar (DACT – Dissimilar Air Combat Training) entre aeronaves A-4 e Pampa III, inicialmente com voos 1×1, que foram evoluindo para cenários mais complexos, com combates aéreos 2×1 e 2×2. Cada missão de DACT foi coordenada pelos operadores dos radares MTPS-43, usando vários consoles simultâneos. Foram realizados briefings e debriefings em cada voo entre pilotos e operadores de radar, para maximizar o aprendizado de cada missão, onde foram introduzidas diferentes táticas de interceptação utilizando GCI (Ground Control Intercept). Desde 1998, a FAA emprega o idioma inglês (padrão da OTAN) para comunicações e treinamento teórico-prático, razão pela qual é regra o uso deste idioma também em briefings e outras comunicações entre pilotos/operadores e oficiais de controle de radar.
O Exercício Soberania 2019 foi uma ótima experiência para o esquadrão de aeronaves Pampa III. Essa jovem unidade foi formada em 2015, quando os supersônicos Mirage/Finger foram retirados de serviço no final daquele ano. Originalmente equipados com o Pampa II, a unidade (Escuadrón I do Grupo 6 de Caza) recebeu os primeiros Pampa III no segundo semestre de 2018. A principal diferença entre as duas versões é a introdução de uma aviônica digital com uma cabine dominada por três MFDs (glass cockpit), um datalink de treinamento (EVA – Embedded Virtual Avionics) e um simulador de guerra eletrônica (IFEWS – Air War Simulator): esses sistemas permitem que o Pampa III se torne um treinador de combate de 5a geração, com a capacidade de gerar diferentes cenários de combate. Além disso, durante os combates 2×2, eles realizaram operações noturnas com apoio do GCI, empregando óculos de visão noturna para executar a interceptação e a identificação visual dos A-4AR, que operavam no modo “encoberto” (sem iluminação externa). Essas operações foram muito complexas, demonstrando o excelente nível de treinamento alcançado na operação.
Navegações táticas também foram realizadas ao longo do exercício. As navegações incluíram missões de interdição aérea (IA) para atacar alvos terrestres diversos, usando vários perfis de voo, entre eles, o rasante (LO-LO-LO); o alto-baixo-alto (HI-LO-HI) e uma combinação dos anteriores. No início, essas missões foram feitas pelos A-4AR e Pampa III separadamente, para, na sequência, serem montados voos combinados.
Aproveitando a presença dos navios da Marinha da Argentina em Ushuaia e no Canal de Beagle, foram realizadas missões de ataques a alvos navais durante as navegações táticas realizadas no setor sul de Río Gallegos. Para o adestramento, também foi usado um velho casco enferrujado do navio Marjory Glen, que fica na costa de Punta Loyola (leste do Río Gallegos, na foz do rio homônimo no Oceano Atlântico), ao qual as aeronaves fizeram numerosos ataques provenientes do mar. Esta mesma embarcação foi usada pelos A-4B Skyhawk, nos dias que antecederam ao início do conflito nas Ilhas Malvinas em 1982, para treinar técnicas de ataque a navios e familiarizar os pilotos com o voo rasante sobre o mar. É necessário ter em mente que a Força Aérea, até então, não tinha experiência ou treinamento em guerra aeronaval.
Em uma dessas navegações, uma esquadrilha de quatro Pampa aterrissou na Base da Força Aérea do Rio Grande, localizada na Ilha Terra do Fogo, realizando voos táticos sobre o Canal de Beagle e as Ilhas dos estados no extremo sul do país, perto da fronteira chilena. Uma disputa com o Chile pela soberania de três ilhas nesse canal quase levou os dois países a uma guerra aberta em dezembro de 1978, no chamado “Conflito do Canal de Beagle”. Naquela época, toda a FAA estava posicionada na Patagônia, apoiada pela força-tarefa da Marinha Argentina, capitaneada pelo porta-aviões ARA 25 de Maio, que incluía os submarinos argentinos que já haviam atravessado para o Oceano Pacífico pela passagem de Drake para atacar a costa chilena. A intermediação de um enviado papal chegou a tempo de evitar um conflito considerado como certo.
As missões COMAO (Combined Air Operations) ocorreram na segunda etapa da operação. COMAO é o termo usado quando diferentes tipos de aeronaves (como aeronaves de interceptação, caças, helicópteros SAR, reabastecimento, reconhecimento, aviões de inteligência) interagem em ações coordenadas, para atingir objetivos militares definidos em um tempo e área geográfica determinada.
O Diretor de Exercício e sua equipe delegam a tarefa de executar a COMAO a um Oficial que passa a ser designado como Comandante da Missão (MC – Mission Commander). O MC recebe a tarefa por meio de uma ordem de tarefas aéreas (ATO – Air Tasking Order). A ATO descreve informações essenciais para a COMAO, como objetivos, forças participantes, período, regras de engajamento e outros parâmetros. Embora o ATO contenha muitas informações, ele serve apenas como um amplo conjunto de parâmetros para o COMAO.
Por meio da interação de planejamento e da coordenação com todos os meios participantes, o MC deve desenvolver um plano de operações aéreas que melhore a interação, garanta eficácia e minimize as ameaças ao COMAO. Ser o MC é, portanto, um desafio extraordinário de liderança. O papel implica ter a responsabilidade geral da missão. A importância e a necessidade de treinar Comandantes de Missão é muito importante para a Força Aérea Argentina. É por isso que, por mais de uma década, a instituição realiza cursos de MC para seus oficiais na VI Brigada Aérea, onde estudantes de outros países da região também participam.
Uma vez concluído o planejamento da COMAO, o MC deve liderar a sessão informativa ou “briefing em massa” (mass briefing). Todos os envolvidos participam do briefing, pois é considerado muito perigoso ter participantes voando que não estejam completamente familiarizados com o plano geral da COMAO. São apresentados objetivos, tarefas, ameaças e táticas, que podem ser aprofundados em uma reunião separada, se necessário, com os subcomandantes da missão (líderes de cada pacote do voo). No final do “briefing em massa”, todos os participantes devem saber qual é o plano, o porquê, sua tarefa individual dentro do plano principal, bem como os diferentes planos de contingência. O que separa um excelente MC dos outros é a capacidade de transmitir o “briefing em massa” fazendo com que todos compreendam o “cenário geral” e como sua tarefa individual é importante dentro do plano geral. Uma vez concluídas as operações aéreas e com todos os meios já em solo, chega o momento do “debriefing em massa” (mass defriefing), em que o foco principal é analisar o que deu errado e como esses erros podem ser corrigidos, bem como validar os acertos. Originalmente, três COMAO estavam planejadas, que teriam um comandante de missão de cada esquadrão destacado (A-4, Pampa e Mi-171). No entanto, apenas um foi executado.
Para testar as táticas de superioridade aérea, as operações de contenção aérea (CA – Counter Air) – que podem ser ofensivas (OCA – Ofensive Counter Air) ou defensivas (DCA – Defensive Counter Air) – foram realizadas pelos elementos da COMAO. As operações da OCA buscam destruir, interromper ou degradar as capacidades aéreas inimigas (pistas, locais de lançamento de mísseis, aeródromos, entre outros) atacando-as o mais próximo possível de sua fonte. Por outro lado, as operações da DCA buscam a proteção de forças amigas dos contra-ataques aéreos e de mísseis inimigos.
Para melhor simular missões de OC, foi estabelecida a clássica situação de forças “Azuis” e “Vermelhas” para simular um conflito militar. Na força “Azul”, o A-4AR Fightinghawk, no âmbito das operações da OCA, cumpriu os papéis de interdição aérea e ataques a alvos de oportunidade. Também fez parte da força “Azul”, uma esquadrilha de Pampa e os helicópteros Mi-171E/UH-1H, que formaram um pacote de Combat SAR (C-SAR) perto de BAM Río Gallegos. O Pampas III cumpriram o papel de RESCORT (Rescue Escort), protegendo as tropas em terra e, também, os helicópteros de resgate contra ameaças terrestres e aéreas. Os Pampas também realizaram operações de DCA, mantendo alertas de reação rápida (QRA – Quick Reaction Alert), protegendo o campo de pouso contra a força “Vermelha”. Como parte da força “Vermelha”, uma segunda esquadrilha de Pampa participou como “bandidos” (atacantes) visando comprometer a operação de resgate e atacar o campo de aviação BAM Río Gallegos.
A-4AR e o AIM-9M
Um dos principais objetivos do Exercício Soberania foi o lançamento de um míssil Sidewinder AIM-9M. Foi a primeira vez que o A-4AR Fightinghawk disparou um míssil, desde que este bombardeiro entrou em serviço em 1997. Para entendermos a importância desse evento, é necessário voltarmos a 2008, quando a FFA lançou seus últimos mísseis Matra Magic II com o Dassault Mirage IIIEA, evento que foi vivenciado com grande entusiasmo por muito dos funcionários destacados em Río Gallegos no “Soberania”.
A importância do lançamento do AIM-9 foi referendada pela presença do Comandante de Adiestramiento y Alistamiento de la FAA, Brigadeiro-General Alejandro Amorós, que participou do voo a bordo de um OA-4AR. O lançamento ocorreu em 12 de novembro, para o qual dois A-4AR decolaram carregando cada um míssil real AIM-9M, acompanhado de outro OA-4AR (biplace) que monitorou o lançamento. Além destes, dois Pampa III também participaram da esquadrilha, para capturar o lançamento em vídeo. O tiro do Sidewinder foi perfeito e, após o pouso e o retorno dos aviões à plataforma, houve momentos de emoção e alegria.
Como mencionamos anteriormente, foi um evento extraordinário e muito simbólico para a Força Aérea e seus membros. De fato, procurou-se enfatizar que a FAA ainda está operacional e ativa, apesar dos permanentes problemas orçamentários que, além de afetarem significativamente o número de horas voadas ao longo do ano, têm adiado constantemente os planos de modernização, como a aquisição de novos equipamentos, entre eles, o novo caça-bombardeiro, que até o final de 2019 indicava que seria o sul-coreano KAI F/A-50 Golden Eagle, cujas negociações entre os dois países estavam muito avançadas. No entanto, a mudança do cenário político na Argentina com as eleições presidenciais de dezembro de 2019 trouxe de volta a incerteza sobre essa importante questão para a Força Aérea, que hoje precisa urgentemente renovar sua frota.
A presença de aviões no sul da Argentina não passou despercebida pela Força Aérea do Chile (FACH). O radar da BAM Río Gallegos capturou uma atividade incomum e intensa na Base Aérea Chabunco, sede da IV Brigada Aérea, equipada com os Northrop F-5E/F Tiger III pertencentes ao Grupo 12 de Aviação. O jogo de “gato e rato” era muito comum quando a Força Aérea Argentina mantinha permanentemente os Mirage 5A Mara em Río Gallegos (sede até 1996 da X Brigada Aérea). Havia uma dinâmica muito interessante entre as duas forças toda vez que a FAA realizava um exercício operacional na área, que de certa forma, foi revivida no Soberania. O exercício terminou com o cumprimento de todos os objetivos planejados, melhorando as habilidades dos pilotos e estabelecendo um alto padrão para as operações futuras do ano 2020. Os principais ingredientes para essa conquista foram o grande comprometimento de todo o pessoal envolvido e a liderança-chave do DIREX e dos chefes de esquadrão, todos envolvidos no misticismo de operar em uma região tão querida pela Força Aérea, onde, em 1982, durante a Guerra das Malvinas, a FAA e seus pilotos surpreenderam o mundo inteiro.