Em missão de misericórdia um 727 queniano tirou 637 afegãos de Cabul. A operação de evacuação do Afeganistão não teve similar na história, e aconteceu justamente em uma época que a internet permite acompanhar muita coisa em tempo real. Através de imagens de satélites, sites de rastreamento de voos e câmeras ao vivo no Aeroporto Internacional Hamid Karzai (KBL/OAKB), em Cabul, foi possível assistir parte da grande movimentação aérea que evacuou milhares de pessoas do país.
Nas duas semanas mais intensas da operação, centenas de aeronaves militares C-17A, A400M, C-130 iam e voltavam do Afeganistão a todo momento, em uma ponte-aérea que – literalmente – voava contra o relógio. Entre tantos aviões militares, alguns tráfegos chamaram a atenção, com no caso de um “misterioso” Boeing 727-200 albino, visto operando duas vezes em Cabul.
Aviões brancos operando em áreas de conflito, sempre chamam a atenção de quem se interessa pelo assunto. Essa pintura – ou a falta dela – é sinônimo de operações especiais, clandestinas, discretas, um artifício muitas vezes usado pelas agências de inteligência, como a americana CIA, ou por Comandos de Operações Especiais. Com essa realidade em mente, o 727 despertou diversas teorias e suspeitas, entre elas sobre uma possível operação da CIA na região.
“Mistério” desfeito
Em uma reportagem de Erika Gibson, publicada no jornal South Africa’s Mail and Guardian, e replicada pelo Site The Drive, foi desvendada a origem e o motivo da operação do Boeing 727 “caiado” durante a tumultuada evacuação aérea de Cabul.
Fabricado em outubro de 1979, o Boeing 727-2Q9F, registro civil 5Y-IRE, batizado de “Irene”, pertence a empresa africana Safe Air Co. (S.A.C.), com sede em Nairobi, no Quênia. O site desta empresa mostra o 727 como parte da sua eclética frota, também formada por bimotores Transall e Boeing 757.
Durante a missão no Afeganistão, o clássico trijato Boeing 727-200 estava sob o comando do experiente Capitão Niel Steyl, que foi entrevistado pela repórter Erika Gibson.
Conforme Steyl, poucos dias depois do ataque suicida que matou 13 militares americanos e pelo menos 170 afegãos em 26/08, um membro do Departamento de Estado dos EUA (DoD) procurou a empresa, oferecendo um contrato de fretamento emergencial com objetivo de retirar algumas pessoas de Cabul.
O Capitão da Safe Air falou que a empresa já havia prestado serviços no Afeganistão para o governo americano, mas num período menos conturbado, antes do Talibã tomar a capital do país. Justamente naqueles dias da confusão em Cabul, ele e a sua tripulação estavam com o “Irene” na cidade de Kulob, no sul do Tadjiquistão, próximo da fronteira com o Afeganistão.
“Na noite de quinta-feira [30/08], após o ataque suicida, recebemos um telefonema desesperado de funcionários do Departamento de Estado dos EUA em Cabul, perguntando se estaríamos dispostos a ajudar com voos de misericórdia … A urgência tornou-se crítica para evacuar um grupo de forças especiais afegãs e seus familiares. Por muitos anos, eles ajudaram as forças dos EUA no país, e como tal, certamente teriam sido mortos pelo Talibã, pois são vistos como traidores”, disse o Capitão Steyl para o Mail and Guardian.
Conforme o interlocutor do DoD, estava muito difícil encontrar espaço nos aviões militares que estavam deixando o país, e a retirada desses aliados e seus familiares era de suma importância para o governo dos EUA. Foi aí que entrou o “Irene”, e os seus voos de misericórdia.
Conforme o Comandante Steyl, no primeiro voo, foram necessários apenas 40 minutos entre o pouso, o reabastecimento, o embarque de 308 passageiros e a decolagem do Aeroporto Hamid Karzai. Vale ressaltar que o 727 “Irene” é um jato puramente cargueiro, sem assentos para acomodar os passageiros, possibilitando transportar essa grande quantidade de pessoas – próximo ao dobro de quando estava ativo nas linhas comercias.
O embarque dos passageiros foi esperado com certa apreensão pelos tripulantes do 727, pois pensavam que depois de vários dias escondidos em um bunker militar, poderiam estar nervosos, tensos e abatidos.
“Esperávamos um grupo [de passageiros] abatido, mas ficamos agradavelmente surpresos com eles, que eram bastante falantes e bem vestidos – apesar de terem ficado escondidos em um depósito em condições adversas por uma semana. Foi bacana ver o alívio e a gratidão da parte deles por termos chegado a tempo de salvá-los”, contou Steyl contou para o Mail and Guardian.
Para evacuar todos os militares afegãos e seus familiares, foi necessária uma segunda viagem.
Nesta segunda surtida, o embarque foi atrasado por conta da paralisação de toda a operação de rampa do aeroporto. A operação do 727 aconteceu justamente no momento que as forças dos EUA estavam realizando a cerimônia de partida dos 13 militares mortos no atentado de Abbey Gate. A movimentação no aeroporto só foi liberada depois do evento. Neste voo, o trijato cargueiro levou para o Tajiquistão 329 “almas”.
No país vizinho, já a salvo, todos os evacuados pela Safe Air foram acomodados em tendas provisórias, até que um voo especial enviado pelo governo dos EUA pudesse apanhá-los e levá-los para outros locais. é interessante salientar que nenhum dos 637 passageiros levados para o Tajiquistão, tinham a menor noção para onde estavam indo. Eles apenas estavam felizes de estar fora do Afeganistão e, principalmente, longe do Talibã.
Apesar de ser uma tripulação acostumada a voar em áreas perigosas em diversos locais do mundo, essa missão de misericórdia foi especialmente gratificante. Estas operações são ainda mais impressionante, quando pensamos que foram realizadas em uma área de alto risco, por um jato cargueiro civil com 40 anos, e sem qualquer sistema de autoproteção contra mísseis.
Para conferir a reportagem completa de Erika Gibson, é necessário acessar o site do jornal Mail and Guardian, que libera a leitura apenas para assinantes.
Fonte: The Drive
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