Rússia pressiona empresários para repôr aviões e tanques perdidos na Ucrânia. Uma vídeo-chamada entre o o presidente russo Vladimir Putin e o vice-primeiro-ministro e ministro do Comércio e Indústria, Denis Manturov, revelou uma situação bastante importante dos bastidores da indústria bélica da Rússia. A baixa taxa de produção de equipamentos de defesa foi a pauta da conversa de alto escalão, mantida em 11 de janeiro e vazada pela mídia estatal.
Na gravação divulgada pela agência de notícias RIA Novosti, há um momento de certo constrangimento quando Putin critica o ministro sobre a falta de contratos para a indústria de defesa. Enquanto o ministro respondia as criticas do presidente sobre a falta da assinatura dos contratos para a fabricação de novos caças, Putin interrompe Manturov perguntando incisivamente “quando isso seria resolvido?”. E seguiu, ordenando que esses contratos, especialmente dos caças, fossem fechados “no máximo dentro de um mês”.
Esse puxão de orelhas público é muito raro, especialmente na carreira de Manturov, que é descrito como o “menino de ouro” da indústria de defesa do governo. Por mais de duas décadas ele galga postos cada vez mais elevados, escapando em grande parte de qualquer culpa que lhe fosse atribuída pela desaceleração no faturamento da indústria. Ele também é parente do CEO da Rostec, Sergei Chemezov, um dos aliados mais próximos e mais antigos de Putin.
Mas, após esse castigo no horário nobre, “você deve se perguntar se Manturov será o próximo amigo de Putin a cair de uma janela em algum lugar”, brincou um analista de defesa de Moscou, falando ao Breaking Defesa sob acordo de anonimato.
A situação demonstra que, se Putin quiser continuar com as operações na Ucrânia, precisa encontrar uma maneira de aumentar a produção da sua indústria de defesa. Moscou está buscando meios para isso. Em 13 de janeiro, o MoD do Reino Unido divulgou uma notícia informando que a fábrica de tanques russa UVZ, começou a usar mão de obra de presidiários na sua linha de produção.
Caças russos
Mas os de corrupção e podridão interna, combinados com as sanções globais, significam que a tarefa pode ser quase impossível, não importa a pressão que o comandante Putin passa fazer sobre o setor. Essa é uma preocupação particularmente aguda quando se trata de produção de aeronaves.
A Sukhoi, por exemplo, possui atualmente três grandes plantas de produção de aeronaves no país: a fábrica Komsomolsk-na-Amure (que produz os jatos Su-35 e Su-57 de 5ª geração), Irkut (S-30SM2) e a fábrica NAPO em Novosibirsk (Su-34) . Essas instalações são comparáveis em tamanho às instalações do Boeing, em Saint Louis, no Missouri, onde a antiga McDonnell-Douglas produzia aeronaves de combate.
No entanto, de acordo com as informações públicas disponíveis, a Força Aeroespacial Russa (VKS) Aviação Naval Russa receberam apenas 31 aeronaves em 2022, sendo: 15 jatos Su-35/Su-57, cerca de 12 Su-34 e apenas quatro caças navais Su-30SM2 para a Marinha. Nenhuma aeronave foi exportada em 2022, seguindo uma tendência dos últimos tempos que o setor aeroespacial russo não consegue fechar contratos e, sequer, cumprir as entregas planejadas.
Com a intensificação das sansões internacionais pós-invasão da Ucrânia, mesmo que surjam clientes estrangeiros para comprar os caças Su-35, por exemplo, ou algum avião russo, “o setor aeroespacial do país provavelmente não terá condições de atender aos pedidos, mesmo que queira”, escreveu o analista John V. Parachini , em um relatório recente da RAND.
Com uma fraca exibição da “moderna e avançada” aviação de combate russa na Ucrânia, cuja expectativa era estabelecer rapidamente o domínio aéreo, as perdas da VKS foram significativas. Pelo menos 66 jatos de combate, incluindo 11 caças Sukhoi Su-30SM e 18 Su-34, este último o mais caro de todos e produzido em um ritmo muito baixo.
Impacto das sanções e fuga de cérebros deixam poucas opções
Observadores experientes do setor de defesa da Rússia apontam que as sanções lideradas pelos EUA têm um efeito desproporcional na produção aeroespacial, mais do que em qualquer outro setor.
Fábricas de tanques e instalações de produção de plataformas tecnologicamente menos complexas podem recorrer à importação de geladeiras, máquinas de lavar e outros eletrodomésticos para retirar os microchips, explicou um executivo ucraniano de eletrônica de defesa familiarizado com a indústria russa que falou ao Breaking Defense.
“Mas isso não vai ajudá-lo a produzir um conjunto de radar aerotransportado ou um módulo de Guerra Eletrônica ou uma cabeça de busca. A produção de alguns dos subsistemas mais críticos para caças russos quase parou. Itens problemáticos, como a antena de radar passiva de varredura eletrônica (PESA) do Su-35, podem exigir um ano ou mais – e isso em tempos sem embargos, sem interrupções de fornecimento”, disse a fonte.
Objetivo quase impossível
Esses problemas são intensificados quando se trata de manter a frota de bombardeiros estratégicos de longo alcance, que na guerra fria se tornaram a “imagem do poder aéreo da Rússia”. Logo após a virada do ano, a VKS transferiu os bombardeiros Tupolev Tu-95 e Tu-22M3 e outros ativos da Base Aérea Engels-2, depois que mísseis ucranianos atingiram o local e danificaram algumas aeronaves.
A nova base dos bombardeiros fica em Ukrainka-Seryshevo, na região de Amur, a cerca de 6.000 quilômetros da fronteira ucraniana, longe dos ataques. Isso significa que essas aeronaves sofrerão maior desgaste para cumprir suas missões, conforme observou um ex-engenheiro de aeronaves militares russas, o qual observou “que aumentará rapidamente o acúmulo de horas de voo dessas antigas aeronaves”.
“Aeronaves de caça ainda podem ser produzidas, porque durante o colapso econômico da Rússia na década de 1990, as fábricas evitaram a falência vendendo sua produção para o clientes estrangeiros como a China, Índia, Argélia, Malásia, etc. Mas, quase ninguém comprou bombardeiros estratégicos russos, e as linhas de produção foram encerradas e os trabalhadores migraram de ramo. Um exemplo é setor de design da Tupolev que não existe mais. O prédio onde funcionava está agora arrendado a uma empresa comercial”, observou o engenheiro, que salientou: “uma vez que as horas de voo desses bombardeiros são gastas, eles devem ser aposentados… e não há nada para substituí-los.”
Outro caso semelhante de ativos que são difíceis de substituir é o mais novo e moderno caça russo, o Su-57. Uma recente avaliação da inteligência do MoD do Reino Unido informa que, embora a aeronave tenha sido empregada na Ucrânia, seu papel é limitado ao território russo, de onde lança os mísseis ar-superfície ou ar-ar de longo alcance na Ucrânia. “É muito provável que a Rússia esteja evitando danos à reputação do jato e o comprometimento de tecnologia sensível caso ocorra uma perda em território inimigo”, diz o relatório do Reino Unido.
A Rússia agora continuará tentando compensar o que perdeu em combate e manter os níveis de força, mas com sua base industrial caindo constantemente e modernas armas sendo fornecidas à Ucrânia, esse poderia ser um objetivo quase impossível.
Desafios semelhantes em terra
Embora as preocupações com a produção de aeronaves estejam quase em segundo plano, tem havido muitas preocupações sobre os veículos terrestres. Analistas do setor classificam as perdas da Rússia como irreversíveis e sem chance de os níveis de estoques pré-guerra serem atingidos em um futuro próximo. As perdas na Ucrânia – estimadas em mais de 1.500 tanques – não podem nem chegar perto de serem substituídas, principalmente pelas baixas taxas de produção na indústria de defesa.
Para repôr emergencialmente as perdas, tanques mais antigos e outros veículos blindados que estavam em armazenamento e conservação de longo prazo foram colocados em operação e enviados para o campo de batalha.
A indústria e as forças armadas russas estão buscando alternativas para corte de custos e agilizar as entregas. Em outubro passado, vários tanques T-90, o modelo mais moderno atualmente, foram enviados para as linhas de frente na Ucrânia sem os inúmeros recursos que normalmente fazem parte da configuração padrão.
Um trem foi visto transportando oito novos T-90 sem as blindagens reativas externas, que protegem os veículos contra ATGM. Esses tanques também estavam sem os armamentos externos, que normalmente são vistos em unidades operacionais.
Atrás das linhas, há sinais de desespero também de altos funcionários.
No final do mês de outubro do ano passado, o Vice-Diretor do Conselho de Segurança da Rússia, o ex-presidente e primeiro-ministro Dmitri Medvedev, visitou a fábrica da UVZ, com o objetivo pressionar a administração da empresa para redobrar seus esforços.
“O objetivo foi estabelecido para a execução dos contratos de defesa, e a prevenção das interrupções no fornecimento de equipamentos. Chamou-se a atenção para o fato de que todos os empreiteiros podem ser responsabilizados, inclusive por acusações criminais… A supervisão sobre a execução continuará”, postou Medvedev em seu canal Telegram após a visita.
O analista político e militar russo Aleksandr Djokic, falando sobre a visita, comentou: “Medvedev usava um sobretudo de couro preto, como os agentes do NKVD (precursor da KGB) costumavam usar durante a era stalinista. Todo dia uma nova baixa. Se isso continuar por mais alguns meses, vai se tornar completamente surreal”, escreveu nas suas redes sociais.
Falando ao Breaking Defense, o analista foi mais claro: “Medvedev visitou a fábrica para alertar seus gerentes sobre as consequências de não cumprir suas metas de produção. É um símbolo da velha fórmula stalinista de medalhas ou prisão dos anos de guerra. Se você cumprir o plano, você é recompensado, mas se você não cumpri-lo, então estará no gulag [campos de concentração da União Soviética].”
Então, a esse respeito, talvez a repreensão de Putin a Manturov não tenha sido tão surpreendente, afinal. O que acontece se a produção de aeronaves não aumentar pode ser ruim para Manturov e para a campanha da Rússia na Ucrânia.
@FFO